Jango, o conciliador
Lançando extensa
biografia sobre João Goulart, historiador Jorge Ferreira fala sobre a
importância do ex-presidente e afirma: ele não foi covarde, foi sensato
Ronaldo Pelli
19/7/2011
Tarefa, no mínimo, complexa, a que o
historiador Jorge Ferreira se propôs: descrever o ex-presidente João Belchior
Marques Goulart (1919-1976), em toda a sua humanidade. Não queria compactuar
com o discurso que repete uma série de injúrias contra o político que foi, ao
mesmo tempo, sucessor de Getúlio Vargas, e cunhado de Leonel Brizola, com quem
teve uma amizade conturbada. Nem com o tom de vitimização, que o coloca numa
posição passiva em relação ao golpe de 1964, que o tirou do poder. O resultado
desse trabalho é o livro “João Goulart, uma biografia”, um calhamaço de mais de
700 páginas, que tenta evidenciar um personagem indispensável para um episódio
decisivo da história recente do Brasil.
Segundo Ferreira, professor titular de
História do Brasil da UFF, foram dez anos de trabalho, em pesquisa ou redação,
que não se concentraram apenas no período em que Jango estava em evidência. O
livro tenta reconstituir da infância de Janguinho, no Rio Grande do Sul, ao fim
de sua vida, no exílio, entre suas fazendas no Uruguai e na Argentina, onde
morre, em mais um episódio envolvido em teorias que resvalam na conspiração.
Conspiração, aliás, que Jango enfrentou
antes, durante e depois da presidência, vinda de todos os lados ideológicos,
por ser, em tempos de radicalizações políticas, um homem que valorizava a
democracia, o diálogo e a conciliação. Ferreira se atém aos fatos e tenta
mostrar, na medida do possível, o que realmente aconteceu durante o governo
Jango, trazendo à luz as ações - e suas consequências - do então presidente que
desembocariam numa ditadura de 21 anos. Também apresenta como a figura de
Goulart foi avaliada por pesquisadores
em seguida: geralmente com um desprezo, além de desumano, desnecessário.
Em entrevista sobre o seu livro e seu
biografado, o professor sugere que devemos pensar em Jango, não como um medroso
que saiu do governo sem lutar, mas como um homem que evitou uma guerra civil e
o derramamento de sangue de irmãos. “Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi
sensato”, opina. Leia o restante da entrevista:
Revista de História - Qual era o objetivo
de escrever “João Goulart, uma biografia”?
Jorge Ferreira - O livro tem o objetivo de
retirar Jango do limbo do esquecimento em que ele se encontra. Embora tenha
sido um personagem importante da vida política do país, as análises sobre ele,
quando raramente surgem, via de regra o definem como demagogo, populista e
incompetente ou, então, vítima da grande conspiração de empresários brasileiros
em conluio com o governo norte-americano. Jango, quando é lembrado, é para ser
culpabilizado ou vitimizado. Meu objetivo, no livro, é compreender o
personagem. E somente compreendemos quando conhecemos.
"Jango, no ministério do Trabalho,
aproximou-se do
movimento sindical e passou a dialogar
com os trabalhadores
e líderes sindicais. Para a direita e
os udenistas, tratava-se
de algo inconcebível para um ministro
de Estado."
RHBN - Como você interpreta essas
desqualificações ao ex-presidente João Goulart?
Jorge Ferreira - Desde que Goulart entrou
na vida pública, em fins de 1945, e, particularmente, quando foi identificado
como pessoa próxima a Vargas, começaram as críticas sobre ele veiculadas na
imprensa. Mas sua atuação como ministro do Trabalho desencadeou uma séria de
ataques e insultos vindo dos setores conservadores, particularmente da UDN. O
que incomodava os conservadores é que Jango, no ministério do Trabalho,
aproximou-se do movimento sindical e passou a dialogar com os trabalhadores e
líderes sindicais. Para a direita e os udenistas, tratava-se de algo
inconcebível para um ministro de Estado. Daí surgiram as críticas: demagogo,
manipulador, incompetente, instigador de greves, agitador etc. A estas
denúncias de cunho político, juntaram-se outras, de cunho moral: mulherengo,
alcoólatra etc. Quando, ao final de sua gestão no ministério, os opositores
perceberam que Jango se tornara o herdeiro político de Getúlio Vargas, os ataques
aumentaram ainda mais, surgindo a expressão “República sindicalista”
As imagens negativas sobre Goulart tomaram
outra dimensão após o golpe militar de 1964. Os golpistas, civis e militares,
passaram a desqualificar o regime democrático que derrubaram e a pessoa de
Goulart em particular. Dele, os vitoriosos de 1964 retomaram os ataques
formulados anteriormente, acrescido de adjetivos como corrupto, irresponsável,
despreparado etc. Jango, no exílio, sequer podia se defender das acusações. As
esquerdas, por sua vez, também contribuíram para o processo: “populista”, por
exemplo, foi conceito criado nas Universidades para desqualificar lideranças
anteriores a 1964.
"Jango era um conciliador porque
buscava o entendimento
entre as partes. Seu objetivo era
alcançar acordos e
compromissos políticos."
RHBN - Ser um presidente “conciliador” num
momento de exacerbações, como no início da década de 1960, foi o maior erro de
Jango?
Jorge Ferreira - Em 1961 o país estava à
beira da guerra civil. Jango, ao aceitar o parlamentarismo, evitou o conflito
de um país dividido e conseguiu, logo a seguir, unir a sociedade em torno da
volta ao presidencialismo. Ao longo de
seu governo, ele se esforçou para ter maioria parlamentar no Congresso
Nacional. Para Jango, assim como para JK, era fundamental unir PSD-PTB para
obter maioria parlamentar e isolar a direita, representada pela UDN. A
estratégia de Jango era negociar as Reformas de Base via pactos entre
pessedistas e trabalhistas. Mas em uma coalizão de centro-esquerda, as reformas
não poderiam ser com o programa máximo, como queriam as esquerdas, mas nem
também com um programa tímido, como queriam os pessedistas. Nesse sentido,
Jango era um conciliador porque buscava o entendimento entre as partes. Seu
objetivo era alcançar acordos e compromissos políticos. Ocorre que o PTB se
esquerdizava desde os anos 1950 e a conjuntura internacional era marcada pelo
contexto maniqueísta da Guerra Fria. Nesse clima, a aprovação das reformas
negociadas no Congresso Nacional tornou-se inviável.
Goulart compreendeu o que ocorreu nos dias
31 de março e 1º de abril de 1964. Não eram pequenos grupos civis e militares
isolados da sociedade que tentavam golpes. Tratava-se do conjunto das Forças
Armadas com o apoio dos principais governadores de estados: Guanabara, São Paulo,
Minas Gerais e Rio Grande do Sul – com suas polícias militares e civis. Mais
ainda, o presidente do Congresso Nacional conclamou os militares a deporem
Goulart e o presidente do STF silenciou-se. O golpe também tinha o apoio dos
meios de comunicação, do empresariado e de amplas parcelas das classes médias.
Jango ainda soube, na manhã de 31 de março, que o governo norte-americano
apoiaria em termos financeiros, diplomáticos e militares o governador mineiro
Magalhães Pinto. Naquela manhã, ele também tomou conhecimento da chamada
Operação Brother Sam.
"Jango deve ser valorizado por
aquilo que não fez:
jogar o país em uma guerra civil que
seria agravada
com a intervenção militar dos Estados
Unidos."
Jango deve ser valorizado por aquilo que
não fez: jogar o país em uma guerra civil que seria agravada com a intervenção
militar dos Estados Unidos. É muito fácil acusar Jango de não liderar a guerra
civil. Afinal, o sangue que correria seria dos outros, sobretudo da população
civil. Jango, nesse aspecto, não foi covarde. Foi sensato. É preciso
considerar, também, que os golpistas civis e militares não planejavam implantar
uma ditadura de 21 anos. O objetivo era depor Goulart. O presidente acreditou
que, em breve, a normalidade democrática retornaria ao país. Não foi o que
aconteceu. Mas nós sabemos disso hoje. Os personagens que viveram aqueles
acontecimentos não poderiam conhecer o futuro.
RHBN - Afinal: Jango foi assassinado ou
teve uma morte “natural”?
Jorge Ferreira - No livro, as considerações
sobre a morte de Jango são similares as de Moniz Bandeira na última edição de
seu livro. Há o caso do depoimento do uruguaio Mário Barreiro Neira. Preso no
Brasil em presídio federal de segurança máxima, ele alegou ter trocado os
remédios de Jango por veneno. As investigações da Polícia Federal e do
Ministério Público desqualificaram suas afirmações. Ele foi preso no Brasil por
vários crimes, mas quer evitar a extradição para o Uruguai, onde também foi
condenado por diversos assaltos. O ministro do STF, José Neri da Silveira,
julgou que Neira não praticou crime político algum no Uruguai, mas, sim, contra
o patrimônio. Pessoalmente, eu não descarto a possibilidade de atentado. Pode
ter ocorrido. Mas, até o momento, não há prova alguma de que tenha sido
efetivado. Jango, por sua vez, era um cardiopata. Seu primeiro acidente
cardiovascular ocorreu ainda em 1962. Sofreu um enfarto em 1969. Além disso,
levava uma vida sedentária, fumava, gostava de uísque, era hipertenso e alimentava-se
de carnes gordurosas. No exílio, passou a sofrer um processo depressivo. Os
remédios que controlavam a pressão arterial prejudicavam a produção de
serotonina, deflagrando ou agravando a depressão.
Os boatos sobre o atentado surgiram porque
sua morte foi próxima às de Juscelino Kubistchek e de Carlos Lacerda. Mas o
historiador lida com provas e indícios. Desse modo, embora não tenha havido
autópsia, a hipótese de morte natural é, no momento, a mais plausível.
RHBN - Por que há tantas acusações de
corrupção contra Jango?
Jorge Ferreira - No livro, o leitor pode
conhecer as qualidades e os defeitos de Jango – como ocorre em qualquer ser
humano. Sobretudo, me esforcei para mostrar suas ambigüidades – algo também
humano. Mas não encontrará denúncias de corrupção. Goulart era um homem rico.
Sua riqueza foi herdada do pai e multiplicada por ele antes de entrar para a
vida pública em 1945. Ele não precisava roubar. Depois do golpe militar, Jango
e JK sofreram uma série de acusações de práticas de corrupção, todas sem
fundamentos, baseadas em calúnias e difamações. Mesmo sem poderem se defender,
nenhuma acusação foi comprovada.
RHBN - O quanto Brizola ajudou e o quanto
ele atrapalhou Jango na sua carreira política?
Jorge Ferreira - João Goulart e Leonel
Brizola mantiveram relações políticas de mútua dependência. Ao longo dos anos,
Goulart apoiou politicamente Brizola no Rio Grande do Sul, enquanto Brizola
apoiava Goulart no plano nacional. Foi Brizola que lutou, de maneira corajosa,
pela posse de Jango na presidência da República durante a Campanha da
Legalidade. Nesse episódio, Brizola teve um papel extremamente positivo,
defendendo a Constituição e a legalidade democrática. Contudo, durante o
mandato de Goulart na presidência da República, Brizola radicalizou à esquerda
e tornou-se grande opositor do presidente. Diversos partidos e organizações de
esquerda, sob a liderança de Leonel Brizola, fundaram a Frente de Mobilização
Popular. Junto com o PCB, a FMP exigia que Goulart rompesse com o PSD e
governasse apenas com as esquerdas – mesmo que perdesse a maioria no Congresso
Nacional. Jango, nesse sentido, teve que enfrentar as oposições de direita,
como Carlos Lacerda e a máquina anticomunista, e as de esquerda, sobretudo
lideradas por Leonel Brizola. No conflito entre esquerdas e direitas, o regime
da Carta de 1946 se desestabilizou e encontrou seu fim em 1º de abril de 1964.
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